segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

DORIVAL CAYMMI - CENTENÁRIO DE NASCIMENTO - 2014 - PARTE I



Os pés nus marcam a areia úmida. Largo chapéu de palha e leves roupas de algodão, os homens sentem a brisa que sopra da terra para o mar. Falam pouco, apenas o suficiente para a realização das tarefas. O sol ainda não surgiu e o grupo se movimenta orientado pela fraca luz de um lampião a querosene. E o marulho do mar.
A rede estendida para secar no dia anterior, é enrolada. O mestre examina a vela para ver se há algum furo. Está em ordem; foi tratada com sangue de peixe e exposta ao sereno, garantindo a sua durabilidade. Os paus também são verificados: meios, bordos e mimburas em perfeito estado.  O proeiro traz a quimanga, cheia de farinha, rapadura, banana e peixe assado, e o barril com água doce. O bico de proa carrega o samburá onde serão guardados os peixes. Os três homens estão prontos para partir.
Ainda é noite quando eles começam a empurrar a jangada sobre os roletes feitos de tronco de coqueiro. Uma frágil embarcação (5 metros de comprimento, 1,5  metros de largura) que balança ao impacto das primeiras ondas.
MINHA JANGADA VAI SAIR PRO MAR
Quando a água chega à cintura, Bento e Zeca saltam sobre os troncos. E Chico diz pra Rosinha:
“minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar Meu bem-querer
Se Deus quiser quando eu voltar do mar
Um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar
E  a Deus do céu vamos agradecer“

Em terra, as mulheres ficam fazendo renda e esperando , esperando e rezando para Iemanjá. Que não chova, que não venha o pé-de-vento, que voltem com os samburás cheios de peixe. Iemanjá, rainha do mar, há de velar pelos homens, pois pescador, quando sai, nunca sabe se volta nem sabe se fica.

“Adeus, adeus
Pescador não esqueça de mim
Vou rezar pra ‘tê’ bom tempo Meu nego
Pra não ‘tê’ tempo ruim
Vou fazer sua caminha, macia
Perfumada de alecrim.”

Pedro saiu às 6 horas da tarde, passou toda a noite, não veio na hora do sol raiar....

“Pedro, Pedro, Pedro, Pedro!
Chegou, chegou, chegou, chegou!
Ninô, Ninô, Ninô, Ninô!
Zeca, Zeca,  Zeca,  Zeca!
Cadê vocês, homens de Deus?
Eu bem que disse a José:
Não vá José! Não vá José!
Meu Deus”

Com um tempo desses não se sai
Quem vai pro mar, Quem vai pro mar
Não vem!

É tão triste ver partir alguém
Que a gente quer com tanto amor
E suportar a agonia de esperar voltar
Viver olhando o céu e o mar
A incerteza a torturar
A gente fica só, tão só. É triste esperar.

Uma ‘incelença’ entrou no Paraíso!
Uma ‘incelença’ entrou no Paraíso!
Adeus, irmão, adeus
Até o dia do Juízo
Adeus, irmão, adeus
Até o dia do Juízo

Perdida no mar, a jangada parece um barco de náufragos. Mas seus tripulantes sabem muito bem o que estão fazendo: lançaram o tauaçu  e silenciosamente soltaram a linhada. O local é bom, logo o samburá começa a se encher. O mar está manso, a pesca é farta e nos rostos queimados do sol há um sorriso. Eles voltarão com muito peixe, vai ‘tê’ presente prá Chiquinha e ‘tê’ presente pra Iaiá.
No brilho da tarde, ao longe, uma vela aparece. Sob o olhar aflito e resignado das mulheres, os pescadores se aproximam. Com água pela cintura, empurram a jangada para a areia, onde estão os roletes, e todos, mulheres, velhos e crianças, ajudam a puxar a embarcação.
Até mesmo um menino, que não é filho de pescador, não mora perto, mas vive fascinado pelo mar, pelas histórias de pescadores, por aquela aventura diária da jangada sobre as ondas. Ele também quer ajudar, participar do esforço, sentir a alegria da volta. É uma criança ainda, mas pressente a beleza e o drama da vida daquela gente.
O menino DORIVAL CAYMMI ama os pescadores, a jangada, a areia, o vento, o sol, o mar.  E a BAHIA.

SUITE DOS PESCADORES - Dorival Caymmi  e família - Tom Jobim




Na Bahia, Caymmi ia à praia de Itapoã, na época um vilarejo de pescadores, onde conviveu com a luta e a tragédia da gente do mar. Ouviu histórias e registrou-as em canções como esta Suíte dos Pescadores, também conhecida como História de pescadores.
Direitos autorais de Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores Musicais
Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira – 1976 – Abril Cultural
Vídeo - Suite dos Pescadores - youtube
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MIMBURAS ou MUMBURAS –(NORDESTE) - nome dado aos dois paus extremos da jangada.
BORDOS , MEIOS  – (NORDESTE)- Cada um dos paus  dentre os que formam as jangadas
PROEIRO –(MARINHA) – marinheiro que vigia a proa.
QUIMANGA (NORDESTE) -  espécie de cabaça, preparada com quengos de coco na qual os jangadeiros levam a comida.
TAUAÇU- (NORDESTE) – pedra furada que serve de âncora às jangadas

Fonte: Dicionário Contemporâneo Da Língua Portuguesa – Caldas Aulete – Editora Delta S.A. – 1958



DORIVAL CAYMMI - CENTENÁRIO DE NASCIMENTO - 2014 - PARTE II



            PEGUEI UM ITA NO NORTE

Do convés, o rapaz contempla as velhas casas da cidade alta, as torres das muitas igrejas, o imponente elevador que une cidade alta e baixa, o mercado, os mármores da Igreja da Conceição, as velas brancas dos saveiros, o forte redondo de São Marcelo. Aos poucos tudo se vai confundindo numa única visão: a última imagem de Salvador, o adeus à Bahia.
Por salas, tombadilhos e corredores espalham-se os viajantes: políticos retornando de visitas às bases eleitorais; comerciantes e industriais em busca de melhores negócios; fazendeiros levando o lucro do cacau para gastar no Rio; doentes em busca de melhores hospitais; moças e senhoras que vão visitar parentes; recém-casados em lua de mel; caixeiros-viajantes e seus repertório de anedotas; jogadores de pôquer, padres, solteironas, funcionários transferidos, literatos, estudantes, prostitutas. É o mundo do ita, onde se fazem amigos, se iniciam namoros e noivados, negócios são resolvidos. Tudo sem pressa, o tempo a bordo é ritmado pelo lento avanço da quilha contra as ondas.
O ita joga muito e várias pessoas sentem-se mal, mas o moço Dorival permanece sereno. Está acostumado a sair em saveiros e jangadas, conhece as histórias do mar, de Iemanjá e dos pescadores que diariamente arriscam a vida sobre as ondas. Para ele o pequeno e balouçante ita é uma tranquilidade. Na verdade, é uma viagem arriscada. Ele deixou a segurança da família para tentar a sorte no centro do país. Sua bagagem:  o curso primário, cursos de inglês, matemática, datilografia e escrituração mercantil; um emprego no escritório e depois na revisão do jornal “ O imparcial”; o segundo lugar num concurso para escrivão da Coletoria; uma péssima experiência como vendedor pracista; um violão.
Com quase 24 anos (nasceu em 30 de abril de 1914), na rua do Bângala (hoje Luis Gama). Filho de funcionário público (Durval Henrique Caymmi), Dorival achou que para vencer na vida precisava abandonar as praias, o sol e o sossego da província pela agitação de São Paulo ou Rio de Janeiro. Ao amigo ocasional de viagem conta indignado como esperou dois anos pela nomeação para a Coletoria, até caducar-se o concurso. E tirara o segundo lugar...
- e o emprego de vendedor?
Dorival solta uma gostosa gargalhada. Não tinha a menor vontade e vocação para o comércio. Acontece que Zezinho, um amigo de infância (José Rodrigues de Oliveira) , não dava conta do serviço e entregou-lhe algumas coisas para vender.  Uns barbantes, uns fios, mas não conseguiu vender uma cordinha sequer. Depois vieram umas garrafas – pasta com garrafas pesa como o diabo! -, mas ninguém queria saber das bebidas. Como desconfiassem que eram falsificadas, Zezinho sugeriu que abrissem uma para experimentar. Abriram uma, abriram outra, apareceram mais “provadores”, lá se foi a amostra, e o emprego....
- E agora, o que vai fazer no Rio?
Dorival não sabe bem. Tem facilidade para o desenho e experiência no jornal, adquirida em seu primeiro emprego em “O Imparcial”. Quem sabe conseguirá um lugar na imprensa? Um contraparente, o José Pitanga, talvez pudesse ajudá-lo a encontrar trabalho.
De noite, um grupo de passageiros reúne-se à volta do moço baiano. Ele toca violão e canta com sua voz grave e bonita. A música é uma paixão antiga. Criança ouvia o pai tocar violão e bandolim. Com Zezinho, ouvia os últimos discos de Lamartine Babo, Noel Rosa, João de Barro. Já dedilhava o violão, e, acompanhado por Zezinho no cavaquinho, divertiam-se fazendo paródias das músicas mais conhecidas. De brincadeira em brincadeira fizera a primeira música aos dezenove anos. Era uma toada – NO SERTÃO -, que a moda na época era música sertaneja.  Mais tarde, ao vencer um concurso de músicas carnavalescas com a composição A BAHIA TAMBÉM DÁ, ganhou valioso prêmio: um abajur de cetim...
O ita avança pelo mar e Dorival vai cantando os sucessos dos discos, cantigas tradicionais da Bahia, a música de suas festas, e, sobretudo, as canções dos pescadores.
4 de abril de 1938: fim da viagem  - Dorival Caymmi desembarca no Rio de Janeiro.

PEGUEI UM ITA NO NORTE
PRA VIM PRO RIO MORAR
ADEUS MEU PAI, MINHA MÃE,
ADEUS BELÉM DO PARÁ.

AI, AI, ADEUS BELÉM DO PARÁ
AI, AI, ADEUS BELÉM DO PARÁ

VENDI MEUS TROÇOS QUE EU TINHA
O RESTO DEI PRA “AGUARDÁ”
TALVEZ EU VOLTE PRO ANO
TALVEZ EU FIQUE POR LÁ.

“todo Ita traz uma leva de nordestinos que vêm tentar a vida no sul. Essa toada está cheia de saudade deles, cheia de certa nostalgia que só aqueles que um dia tomaram um ita e nele navegaram para o Rio podem sentir e compreender. Ela infunde certa tristeza, a lembrança da terra que se abandonou”.



NA TERRA DO FUTEBOL E DO RÁDIO

- Você deve estudar direito em Niterói que é mais fácil!
O moço baiano levou a sério o conselho dos colegas de pensão e começou a se preparar para o vestibular. Mas precisava trabalhar. José Pitanga recomendou-o ao desenhista Edgar de Almeida, da revista “O Cruzeiro”. Foi apresentado ao diretor  Accyoli Neto, ao redator  da seção de cinema Pedro Lima, e disse para Millôr Fernandes, um menino de catorze anos que colava fotografias:  “ olha aqui, não vai demorar muito e você vai colar essas páginas cheias de fotografias minhas”. Certamente não esperava a glória no modesto trabalho que conseguiu na revista: fazer títulos e outros pequenos servicinhos. Pensava em outra frase dos amigos:   - aqui é a terra da música; se você fizer sucesso, fica rico”.
Estava entusiasmado com a primeira experiência no rádio carioca. Levado por Assis Valente e Lamartine Babo, cantara no Clube dos Fantasmas, programa da Rádio Nacional, Noite de Temporal:  “Pescador não vai pra pesca, que é noite de temporá “.

É NOITE DE TEMPORAL

É noite, é noite
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio

Pescador não vai pra pesca
Pescador não vai
 

Pescador não vai pra pesca
Que é noite de temporá
Pescador não vai pra pesca
Que é noite de temporá

É noite, é noite
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio

Pescador se vai pra pesca na noite de temporal
A mãe se senta na areia esperando ele vortar
A mãe se senta na areia esperando ele vortar

É noite, é noite, é noite...




 
Nessa canção Caymmi já mostrava a influência da música de rua da Bahia:  “minha ideia era afirmar bem, em meu acompanhamento, o samba de umbigada da Bahia e a capoeira. Em Noite de Temporal, minha primeira canção praieira, procurei tocar acompanhado pelo toque de berimbau de capoeira. Sempre pus esses elementos nativos no meu acompanhamento, por isso meu violão era diferente.  Usei temas e elementos do folclore”.  Quando usava um de seus temas, procurava justificá-lo para não haver deturpação.
E Edgar de Almeida confirmou: “olha, isto é terra de futebol e rádio”. Não ficou só no conselho: apresentou Dorival para o diretor da Rádio Tupi, Teófilo de Barros Filho, que o contratou por 240 mil-réis mensais. A 24 de Junho de 1938 , num programa junino no quintal da rádio, Caymmi estreou cantando  O QUE É QUE A BAIANA TEM? Samba brejeiro de muito balanço. Dois meses depois passava para a Rádio Transmissora, ganhando 600 mil-réis mensais e mais tarde levado por Almirante, ingressava na Rádio Nacional, com 700 mil-réis por mês e muita publicidade em “A noite“ e na revista “ A Carioca”, os melhores órgãos de publicidade radiofônica de então. A Nacional era uma emissora nova – apenas dois anos de existência -, cujas instalações tinham o melhor equipamento da época.  Ao mesmo tempo, Caymmi começava a frequentar a roda dos músicos eruditos e dos artistas plásticos.
Carmen Miranda foi a primeira a gravar as músicas de Dorival Caymmi. Em 1938, Wallace Dorney preparava um filme – BANANA DA TERRA – com argumento de João de Barro e participação de grandes nomes da música: Almirante, Bando da Lua, irmãs Batista, Orlando Silva e Carmen Miranda. Carmen deveria cantar duas músicas de Ary Barroso (Na Baixa do Sapateiro e Boneca de Pixe), mas produtor e autor não entraram em acordo financeiro. Assim, Wallace, para aproveitar os cenários já feitos, saiu à procura de um samba baiano típico. Caymmi apresentou O que é que a baiana tem? que foi aprovado. O próprio Caymmi ensinou a música a Carmen, orientando-a também em sua movimentação. Em seguida, a composição foi gravada pela cantora, tornando-se sucesso e consolidando uma imagem típica de Carmen Miranda.

O que é que a baiana tem - Direitos autorais de Mangioni & Filhos

Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira – 1976 – Abril Cultural
Vídeo: NOITE DE TEMPORAL - youtube

DORIVAL CAYMMI - CENTENÁRIO DE NASCIMENTO - 2014 - PARTE III

DORIVAL CAYMMI – CENTENÁRIO DE NASCIMENTO- 2014
PARTE III

Carnaval era tempo de muita alegria – fantasiar-se, dançar, jogar confete e serpentina e - por que não? – ganhar dinheiro. Assim pensava Wallace Downey, americano produtor de cinema, que aproveitava a época para lançar suas pretensiosas produções carnavalescas. Assim foi Alô, Alô Brasil e Alô, Alô Carnaval. Para o carnaval de 1939 ele preparava nova produção com Carmen Miranda, - Banana da Terra, como convinha a um país tropical.
Wallace não concordou com o preço pedido por Ary Barroso, para Carmen cantar na Baixa do Sapateiro, e o cenário baiano ficou sem música.  Foi quando alguém se lembrou de um mulatinho que andava fazendo sucesso com um samba que encaixa perfeitamente no cenário. E, além disso, era baiano mesmo. Assim, O QUE É QUE A BAIANA TEM? Entrou para o filma Banana da Terra, na voz de Carmen Miranda, tudo com muito sucesso e grande repercussão, a ponto de popularizar a palavra “balangandãs”, antes pouco conhecida no sul do país. A princípio, uma penca de pequenos fetiches negros, feitos em prata e ouro, acabou designando qualquer enfeite de colares, pulseiras, etc
O QUE É QUE A BAIANA TEM?

O que é que a baiana tem?
O que é que a baiana tem?
  Tem torço de seda, tem!
Tem brincos de ouro, tem!
  Tem pano da Costa, tem!
  Tem bata rendada, tem!
  Pulseira de ouro, tem!
  Tem saia engomada, tem!
  Sandália enfeitada, tem!
 Tem graça como ninguém...
  Como ela requebra bem...
               Quando você requebrar
  Caia por cima de mim...
  Caia por cima de mim...
                                         Caia por cima de mim...

 O que é que a baiana tem?
  O que é que a baiana tem?

       Só vai no Bonfim quem tem...
      Só vai no Bonfim quem tem...
                                                       Um rosário de ouro
   Uma bolota assim
    Quem não tem balangandãs
   Ô não vai no Bonfim...
                             Ô não vai no Bonfim...

Entraram os balangandãs e Caymmi para o teatro na peça musical Jouloux e Balangandãs, de Henrique Pongetti, com a música   O MARO elenco era de amadores da alta sociedade, mas Caymmi entrou porque a senhorita que iria interpretar sua canção praieira desistiu da ideia.
                                                          
O MAR

O mar...
Quando quebra na praia...
É bonito... é bonito...
O mar...
Pescador quando sai
Nunca sabe se volta
Nem sabe se fica...
Quanta gente perdeu
Seu marido... seu filho...
Nas ondas do mar
O mar...
Quando quebra na praia
É bonito... é bonito...

Pedro vivia da pesca
Saía de barco  seis horas da tarde
Só vinha na hora do sol raiá
Todos gostavam de Pedro
E mais do que todos Rosinha de Chica
A mais bonitinha, de todas mocinhas
Lá do arraiá...
Pedro saiu no seu barco
Seis horas da tarde
Passou toda a noite
E não veio na hora do sol raiá
Deram com o corpo de Pedro
Jogado na praia
Roído de peixe
Sem barco, sem nada
Num canto bem longe
Lá do arraiá...

Pobre Rosinha de Chica
Que era bonita
Agora parece que endoideceu
Vive na beira da praia
Olhando pras ondas
Rodando...rodando...
Dizendo baixinho
Morreu...morreu... oh!

O Mar....




Rádio, cinema, teatro, faltava o disco. Novamente apadrinhado por Almirante, em fevereiro de 1939, a voz e a música de Caymmi eram gravadas na Odeon: O QUE É QUE A BAIANA TEM?  e A PRETA DO ACARAJÉ, ambas em dupla com Carmen Miranda. Em agosto saía RODA PIÃO, cantada pela “baianinha” e pelo autor, e, em setembro, RAINHA DO MAR e PROMESSA DE PESCADOR, com o próprio Caymmi.
Sem pensar muito, assinou um contrato com a Odeon, comprometendo-se a gravar mensalmente. Baiano muito tranquilo, que não raro levava meses para compor uma música, Caymmi acabou dispensado da Odeon em 1941. Foi gravar na Colúmbia, voltando à Odeon só em 1946. No rádio, a mesma coisa: depois de uma temporada na Mayrink Veiga, voltou em 1941 para a Tupi, onde ficaria até 1950.
Durante todos esses anos não gravou muito; apenas o suficiente para deixar seu nome como um marco na história de nossa música.  O MAR, É DOCE MORRER NO MAR ( com letra de Jorge Amado), A JANGADA VOLTOU SÓ, VOCÊ JÁ FOI À BAHIA?, ROSA MORENA, MARINA e tantos outros clássicos foram registrados, em sua própria voz, com os Anjos do Inferno, com Dick Farney. Os moços cultos da época, tal como, mais tardes, os universitários diante da bossa nova, viam nas canções de Caymmi o que de mais avançado havia em música popular. Ele sabe por que  -  “cheguei aqui com um violão tocado de maneira esquisita para a época. O violão era tocado então em acordes perfeitos, quadrados. Sempre tive a tendência a alterar os acordes perfeitos.
Eu tirava o dedo de uma corda e punha na outra procurando um som harmônico diferente. Havia dois solistas que faziam aproximadamente o mesmo que eu, com uma diferença: eles eram estudiosos de música, eu não. Eram Aníbal Sardinha, o Garoto, e Laurindo de Almeida, que se tornou, nos Estados Unidos um grande solista de Jazz.  As minhas “cavações” harmônicas já eram estranhas para meus amigos lá na Bahia. Fui chamado de violonista que só tocava em mi maior, mas meu violão agradou tanto que alguns compositores alteraram finais de suas canções à minha maneira” .
Anos mais tardes, suas “cavações” harmônicas seriam vistas como precursoras da bossa nova.


Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira – 1976 – Abril Cultural
Vídeo - O Mar - youtube

DORIVAL CAYMMI - CENTENÁRIO DE NASCIMENTO - 2014- PARTE IV


ACONTECE QUE EU SOU BAIANO

Era um domingo de 1939, Caymmi estava na Rádio Nacional para assistir o encerramento de RÁDIO K EM BUSCA DE TALENTOS, programa de calouros animado por Silvino Neto, e ficou emocionado com a beleza e o talento da moça que ganhou a prova. Dias depois, o discotecário da rádio, Haroldo Barbosa, apresentou-lhe a jovem Stella Maris.
Pouco depois, numa noite de gala na Mayrink Veiga, estreava Dorival Caymmi, apresentado por Carmen Miranda. Novo encontro com Stella, que agora cantava nos melhores horários, recebia centenas de cartas e meninas eram batizadas com o seu nome: não o verdadeiro – Adelaide Tostes – mas o artístico.
Em 30 de abril de 1940, Caymmi completou 26 anos e casou-se com a mineira Stella.
Ela relembra:  - eu trabalhava como lojista, fui para o rádio por acidente. Lá me pagavam o dobro do que eu ganhava na loja. Apesar de papai não gostar, peguei um programa noturno para cantar. Pouco depois, noivei, casei, e nunca mais me lembrei do rádio.
Na calma de sua vida doméstica, Stella fala do chefe da família: - Dorival sempre foi um homem doméstico,  ele poderia ser até funcionário público, pois, apesar de às vezes chegar em cada de madrugada, sempre participou do café matinal com as crianças e sempre procurou tomar conhecimento da vida escolar delas.  Convivo com Dorival há mais de 30 anos (reportagem década de 70), e ele ainda é para mim um mistério. Quando eu descubro uma nova música de Dorival, ela já está pronta. Ele só pega no violão quando já estão prontas letra e música. Ele canta mais facilmente numa festinha de amigos do que na televisão. Desiste do dinheiro para estar em família ou cantando entre amigos. É um homem fabuloso; se eu tivesse que começar de novo, não vacilaria: recomeçaria com ele.
Um anos depois nasceu Dinair ( Nana), cantora de muitos fãs no Brasil e na América Latina. Falando do pai, Nana diz: - eu o considero um gênio na música. Além de ser um grande pai e um grande amigo, é um homem muito atualizado dentro da música, aceitando os novos compositores e vivendo nossa época como músico. Em 1943 nasceu Dori (Dorival Tostes ) que inspirou a música Marina. Com quatro anos de idade ele vivia dizendo  - tô de mal, tô de mal  e a partir daí surgiu a história de Marina, a moça que se pintou: “desculpe, Marina morena, mas eu tô de mal”. Dori estudou piano, teoria e harmonia e é um grande pesquisador e compositor da música  popular brasileira. O caçula Danilo não fugiu à tradição da família; abandonou a Faculdade de Arquitetura para se dedicar inteiramente à musica. Começou pela flauta por influência de Dori. Danilo diz  - na harmonia, papai conseguiu colocar acordes mais dissonantes, abertos que foram de grande importância para o avanço da bossa nova.  Foi uma das grandes contribuições para a modernização da música popular brasileira. Poeticamente, abriu novos caminhos, com palavras que retirou do povo e que hoje são comumente usadas.
Na época em que essa reportagem foi feita( década de 70) Caymmi disse: - sou o mesmo de 1940, quando me casei. Meus filhos são maiores de idade e já seguiram seus caminhos, mas eu continuo no mesmo ambiente de violão e livros. No plano de trabalho me vejo sempre surpreendido; trabalho constantemente, mas não tenho a preocupação do dinheiro, isso é básico. Não tenho prática de matemática, nunca conto dinheiro, nem faço especulações financeiras. Não tenho papeizinhos para contar o que lucrei ou o que irei lucrar. Existem por aí alguns fenômenos de trapaça, mas eu não participo disso porque é muito cansativo. Apesar de ter sido fundador de duas sociedades de direitos autorais, não participo da parte que se refere a dinheiro. Vou até onde me concerne chegar. Não tenho planos para ficar rico na música, porque já me acostumei à situação de proteger os compositores contra a gana que existe pelo dinheiro fácil.
No Brasil ainda estamos gatinhando no negócio de direto autoral. Nos Estados Unidos há uma fórmula: sucesso e dinheiro. No Brasil não é assim. Aqui o autor pensa no sucesso, os editores pensam no dinheiro e os intermediários também. Aqui o artista tem que fazer outra coisa para ganhar a vida. Ser o cantor como eu sou; ser o humorista, como foi Lamartine Babo; ser o “speaker” de futebol e animador de programa de calouros, como foi Ary Barroso.
O brasileiro é um tímido, em princípio. Um homem que depende de um carnaval anual para poder se extroverter, para poder ter um estado de espírito mais amplo, para dizer  o que pensa sem compromisso.  Vejo, por isso, na música de hoje, uma evasão de sentimentos incontidos. A necessidade de fugir a uma certa timidez que sempre houve no caráter do brasileiro.

BAHIA É O SONHO LINDO DO CARAPEBA

Estrela da Manhã, filme que Jorge Amada escreveu e que Dorival Caymmi interpretou em 1951 tinha como argumento uma pequena vila de pescadores -   O intérprete Caymmi estava noivo de uma linda moça, a mais linda do lugar. Um dia chegou a tragédia, na forma de uma grave epidemia. Algo tinha de ser feito. Da cidade chegou um médico, que curou a doença mas acabou roubando a noiva do pescador.
Coincidência ou não, na mesma época a música popular abordava temas semelhantes. O samba-canção e a música de “fossa” predominavam. Caymmi que já fizera em 1947 o samba-canção Marina, sentiu-se à vontade na nova moda de sambas lentos e sofisticados. Em 1952 gravou NÃO TEM SOLUÇÃO, escrita em parceria com Carlinhos Guinle. Mas logo voltou ao seu tema predileto, os pescadores. Em 1953 lançava JOÃO VALENTÃO, música que recordava Carapeba, um pescador idoso, voz de trovão, cara violenta, corpo tostado pelo sol, que conhecera na mocidade.
- Eu sempre combinava com Carapeba umas pescarias pra sair de carona no saveiro dele. Nunca fui, pois toda vez que eu lembrava que tinha que sair às 5 horas da manhã pra voltar somente às 6 horas da tarde, ficava pensando que ia perder o dia todo no mar e deixar a companhia das meninas na praia.
O tempo do samba-canção foi também o tempo das boates, da música cantada em pequenos ambientes, o que já prenunciava a bossa nova. Em 1955, Caymmi cantava na boate Michel, em São Paulo, ao lado de Paulinho Nogueira. Foi quando ganhou a fama de “homem da noite”, mantendo a Michel lotada.  No ano seguinte voltou ao Rio e cantou na boate 36 com idêntico sucesso.
- a Gente cantava muito perto das pessoas. Havia um colóquio, um contato bom com o público.
Da intimidade dessas casas Caymmi saiu para a Europa. Foi em missão do governo brasileiro cantar em Portugal, e aproveitou para dar um giro por Paris, Veneza e Florença. Em Lisboa, vendo todos aqueles barquinhos a vela na enseada do porto, teve saudades da Bahia. Ficou mais emocionado em Caldas da Rainha, ao percorrer uma estrada toda cercada de rosas. A delicadeza da cena evocou-lhe o ritmo de uma valsa.
Sete anos depois (em 1964)  Caymmi estava visitando o pai em Salvador, e fez um sambinha para Rosa a empregada:  “ Nada como ser Rosa na vida...” . Descobriu então
que tinha terminado a música começada em Portugal:
- eu faço música aos pedacinhos. Tenho aqui no bolso o retalho de uma, depois largo e começo outra coisa. Pego uma canção e deixo ir rolando, devagarinho, ruminando, ruminando... Tenho ânsia de ser o autor do mais simples, do mais puro. Parto para encontrar a forma mais doce de dizer as palavras e a música duma canção, num estribilho que você segure na cabeça, que trauteie, que assobie. Meu sonho é chegar à perfeição de ser o autor de uma Ciranda-cirandinha, uma coisa que se perca no meio do povo.
Lançou DAS ROSAS, fusão da valsa com o samba, num show da boate Zum-Zum, junto com Vinicius de Moraes. E a composição fez tanto sucesso que Caymmi foi parar nos Estados Unidos, cantando no programa de Andy Williams (que posteriormente gravaria Das Rosas).
Em 1972 Caymmi lançou mais um LP, no qual predominavam as canções praieiras e cuja capa reproduzia um quadro seu. Nesse disco, o baiano interpretou cantos de candomblé e composições suas baseadas nos ritmos dessa religião. Uma delas ORAÇÃO DE MÃE MENININHA, foi o maior sucesso desse LP lançado com grande cerimônia em frente ao palácio do governo, em Salvador.
Em 1975, outro êxito: GABRIELA, incluída na trilha sonora da telenovela homônima (baseada no romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado).
No início do ano seguinte, apresentou-se num show ao lado da não menos baiana Gal Costa, e entre os sucessos de Caymmi que cantaram, muitos já haviam merecido gravações de Vic Damone, José Feliciano, Frankie Laine, Francisco Canaro e sua típica argentina. Porque Caymmi é assim: o cantor do mar da Bahia, um mar que não tem fronteiras.






Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira – Abril Cultura (1976)
Vídeo: DAS ROSAS - Youtube




DORIVAL CAYMMI - CENTENÁRIO DE NASCIMENTO - PARTE V




OS ARTISTAS AMIGOS FALAM DE CAYMMI  AMIGO E ARTISTA
 
Domingo. No mormaço da tarde, Caymmi está sentado na varanda. É uma casinha simpática, com um limoeiro no quintal. Segura o violão mas não dedilha suas cordas.
Folheia um livro sobre cinema, mas não o lê. O calor está muito forte e ele olha distraído para a filhinha Nana  que brinca no chão.
Quase sem se dar conta, levanta-se, vai para o cavalete, pega o carvão e começa a desenhar- uma palmeira, um rosto amigo, uma natureza morta, a paisagem da Bahia que conserva na memória. Seus dedos acostumados a criar melodias, inventam formas, volumes e cores.
Em 1930, na Bahia, Caymmi frequentou um curso de desenho e aprendeu os rudimentos acadêmicos (desenhar modelos de gesso, como dar a impressão de volume, etc.) que mais tarde o ajudariam no caminha das artes plásticas. Em sua casa do Grajaú, no Rio de Janeiro, instalou o cavalete, comprou telas, papel de desenho, carvão, grafite, pincéis, tintas, e começou a pintar. O trabalho nas rádios deixava-lhe tempo para esse prazer.
- Sou um lírico em pintura, gosto da harmonia das cores; por outro lado não posso me desprender da forma. Meu ideal seria uma pintura que correspondesse em cores às harmonias de Bach. A pintura funciona em mim de um modo todo especial. Não sou um pintor de domingos, como Churchill ou Eisenhower, mas também não chego a ser cem por cento pintor. Tenho um compromisso com a canção, que é, de fato, a minha maneira de exprimir. Em geral, com meus quadros satisfaço interiormente certas frustrações musicais.
No final da década de 40, dedicou-se intensamente à pintura, embora não se tornasse pintor profissional. Na roda de artes plásticas, fez vários amigos, procurando aprender com eles. Augusto Rodrigues, Pancetti, Portinari e Clovis Graciano, recebiam a visita do baiano com sua paixão pela arte, sem distinção de escola: Giotto, Masaccio, Tintoretto, Cézanne, Gauguin, Utrillo, Matisse.  E não perdia qualquer exposição de Pancetti, Graciano, Guignard.
A pintura nunca impediu que Caymmi fizesse boas músicas. Antes, ajudou: suas canções retratam, em pinceladas vigorosas e coloridas, o homem, o mar e o ambiente da Bahia. Assim como seus quadros transmitem a sonora poesia de sua terra natal. Na época em que mais pintava, fez duas de suas melhores composições musicais:  O VENTO e FESTA DE RUA.
Em 1956, Caymmi participou da Exposição dos Artistas de Rádio realizada na então Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Apresentou seis quadros, entre eles o retrato do cronista Rubem Braga e de Rui Dias, padrinho de seu filho Danilo.






DEPOIMENTO DOS AMIGOS

RUBEM BRAGA – Cronista

Caymmi é um pintor sério, que trabalha devagar e não procura efeitos fáceis nem truques de primitivo  de araque. Já o vi pintar muitos dias: ele fez um retrato meu. Primeiro desenhou, fez uns quatro ou cinco desenhos no papel, afinal um na tela. Aí pegou o pincel  e foi pintando com tinta muito rala – um óleo sem volume, mas também sem simplismo, sem placas coloridas, com uma certa sabedoria de mistura, uma fineza de tons. Gastou três sessões, e possivelmente mais de uma garrafa de uma cachaça muito especial que eu tinha naquele tempo, feita em alambique de louça de uma velha fazenda do Estado do Rio, guardada em tonel de carvalho. E ali estou eu: não precisamente como sou agora, mas como eu era, há cerca de 20 anos atrás. No fundo – como acontecia de verdade naquele apartamentinho de Ipanema -, o mar, algumas ilhas e dois pinheiros que havia ali, dois pinheiros que deram muito trabalho , porque ficavam parecendo duas torres de aço, dessas para a exploração de petróleo.
Tenho vários retratos meus, um deles desenhado com muito capricho, também em várias sessões, por Cândido Portinari. Mas o meu jeito de ser, meio triste e meio bobo, está mesmo naquele retrato feito pelo pintor Dorival Caymmi.

GENARO DE CARVALHO – Tapeceiro e Pintor

Caymmi é o repórter e o poeta do mar. Considero-o um dos mais importantes e dignos representantes desta cidade. Homem do povo, com aspirações, temperamento e vivência desse povo. A sua poesia é um canto,  um canto de amor.

MÁRIO CRAVO – Escultor

Caymmi representa perfeitamente a ideia que temos da cultura e da sensibilidade baiana. A amizade que não somente eu, mas a Bahia tem com Caymmi, data de muitos anos. A Bahia é Dorival.








VINICIUS DE MORAES – poeta (1970)

“ Acontece que eu sou baiano” – disse ele, num de seus melhores sambas. E é realmente difícil encontrar alguém mais baianamente dengoso que Caymmi, apesar de sua grande quilometragem carioca. Sua barriga redonda e cheia de ritmo que, parece dançar por conta própria quando ele canta – a barriga de um homem que viveu e amou a vida -, é o retrato da Bahia. Como, de resto, sua cor; a malemolência de seus olhos, quando interpreta; e o balanço gordo  e descansado do seu samba: samba que parece ter o visgo gostoso do ar da Bahia, feito de calor e brisa; o quebranto de suas ladeiras, por onde as baianas descem desmanchando as ancas;  a untuosidade pungente de suas comidas e seus pirões afrodisíacos e a misteriosa claridade de seu luar, que o fez dizer, num verso de mais alta poesia, em sua canção sobre a lagoa do Abaeté; “ a noite tá que é um dia...”
Caymmi constitui, a meu ver como Pixinguinha, Noel Rosa, Antonio Carlos Jobim e agora, despontando no amanhecer, Chico Buarque, um dos cinco grandes solitários da música popular brasileira.  E assim é meu Caymmi: grande sábio, vasto, intenso; um excelso mandarim baiano, que ainda representa melhor que ninguém esse berço mestiço da nacionalidade que é sua Bahia nativa, onde os preconceitos não têm cor e a falta de bossa não tem vez.

CLOVIS GRACIANO  - Pintor e desenhista

O desenho e a pintura de Caymmi são quase de um profissional, embora ele não dê importância a isso. Tem grande facilidade para desenhar, transmitindo perfeitamente bem o que ele pensa e transformando em desenho tudo o que ele quer, com grande inspiração e técnica bem realizada. Mesmo que se ignorasse o nome de Caymmi como compositor e músico e só se conhecesse o pintor, mesmo assim ele estaria à altura de vários pintores que fazem sucesso.
Caymmi não está preso a uma escola. Ele faz parte da arte contemporânea, que vem desde o impressionismo e vai até as formas mais avançadas. Ele é mais equilibrado e, como é um pintor que usa mais os temas da Bahia, sabe interpretá-los dentro dessa escola, dentro dessa maneira de pintar.
Caymmi, para mim, está entre os pintores de renome do Brasil. Está muito bem colocado e não faz feio entre eles.

CARIBÉ – Desenhista e Pintor

Caymmi não tem época. Ele é específico, é a força vital e a poesia de nossa terra. Caymmi é o dengo da Bahia, é a saudade da Bahia, é a tristeza da Bahia, as praias, é o sol.





DORIVAL CAYMMI - CENTENÁRIO DE NASCIMENTO 2014 - PARTE VI


O POETA E O MAR
                                                          JORGE AMADO







Não sei, não recordo quando e onde conheci Dorival Caymmi, quando nos apertamos as mãos  pela primeira vez e pela primeira vez, rimos juntos nossa alegria.  Foi, com certeza, na Bahia,  antes da partida do clássico ita, levando-nos – ao aprendiz de compositor e ao aprendiz de escritor – para tentar exercer nossos ofícios no Rio. Naquele tempo, quem quisesse um lugar ao sol tinha de começar pelo sacrifício de sair de sua terra, a terra da Bahia, onde éramos livres adolescentes nos mercados e nas praias. Só no Rio de Janeiro havia ambiente e oportunidade.
Na praia de Itapoã, nas malícias do Rio Vermelho, nas ladeiras da cidade antiga cresceu o menino Dorival, filho de Seu Durval, modesto funcionário estadual, bom no violão e no trago.  Cresceu assim o moço Caymmi, na pesca, na serenata, na festa de bairro, no samba de roda, nos terreiros de santo, vivendo cada instante de sua cidade e de sua gente, alimentando-se de sua realidade e de seu mistério, preparando-se para ser seu poeta e seu cantor. Livre coração e o desejo de criar.
A música popular brasileira não era ainda assunto de gazetas, revistas e festivais.  O moço baiano, no entanto, não desejava nem o título de doutor nem o emprego público prometido. Queria tão somente compor e cantar. Teve de partir para ganhar a vida difícil.
Naqueles idos de 1936 o mundo era nosso nas ruas do Rio de Janeiro. Lá se vão mais de 30 anos. Uma canção que fizemos juntos naquela época – É DOCE MORRER NO MAR, tirada de uma cena de Mar Morto, continua popular até hoje e pode-se  mesmo dizer: cada vez mais. Aliás, eis uma das características fundamentais da música de Caymmi: sua permanência, sua constante atualidade.
Sendo o seu tema a Bahia, sua vida, seu povo, seu drama, sua luta, seu mistério, sua poesia, seus amores, a morena de Itapoã e as rosas de abril, Iemanjá e o vento do oceano, a jangada e o saveiro, o mundo da Bahia. Não há uma frase sua, uma única, de música ou poesia que seja circunstancial, que derive de moda, de uma influência momentânea.
Não compôs demais, ao sabor do sucesso e da novidade. Cada música sua é inspiração verdadeira e experiência vivida,  é seu sangue e sua carne, é sua verdade. Uma será mais bela, outra mais profunda, aquela mais fácil, mas nenhuma resulta da busca do sucesso ou do aproveitamento de qualquer circunstância.
Caymmi leva meses e meses trabalhando cada uma de suas músicas e letras, ao sabor do tempo e da preguiça baiana e criadora. Segundo dizia Sergio Porto, a música de Caymmi muito deve a essa preguiça, ou melhor, a esse tempo de lazer de medida tão larga, esse tempo baiano. De tudo isso posso dar testemunho, pois nesses trinta e tantos anos  eu o vi compor sem descanso, mas sem pressa. Vi também nascer e crescer a maioria de suas composições mais famosas. Em minha casa – em várias das casas onde vivi – ele trabalhou e criou. Jamais espicaçado por compromisso ou intenção imediatista.
Para Caymmi, a moda não existe. Eu o posso dizer, posso testemunhar como ninguém. Juntos andamos um bom bocado de caminho, juntos criamos alguma coisa, juntos começamos a envelhecer. Juntos fizemos teatro, cinema, tratamos o livro e a partitura, tocamos a vida e o amor. Amizade de toda a vida “ meu irmão, meu irmãozinho.”

(declaração da década de 70).

fonte: Nova História da Música Popular Brasileira - Abril cultural ( 1976)
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