quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

OS PRIMITIVOS - NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA - PARTE I - ELES COMEÇARAM A HISTÓRIA

  

     ELES COMEÇARAM A HISTÓRIA

A Música Popular, essa criadora de ídolos da moderna era da cultura de massa,  começou a nascer no Brasil há mais de duzentos anos, pela mão de artistas cujo nome, na maioria das vezes, a História esqueceu.

Desde o fim do século XVII, o poeta satírico GREGÓRIO DE MATTOS GUERRA, (Salvador 23/12/1636 - Recife 26/11/1696 apelidado BOCA DO INFERNO ou BOCA DE BRASA, conquistava (já velhote) muitas mulatinhas do Recôncavo baiano, cantando versos frascários ao som de uma viola de arame por ele mesmo fabricada. Por suas críticas foi considerado poeta rebelde e primeiro poeta do Brasil.
Pouco mais de cinquenta ano depois, em meados do século XVIII, outro tocador de viola, o poeta carioca DOMINGOS CALDAS BARBOSA, o LERENO  

                                                                        


(Rio de Janeiro 1740, Lisboa 9/11/1800), filho de um português com uma escrava negra de Angola, deixava o Rio de Janeiro e ia lançar na corte de Lisboa umas cantigas repassadas de tal ternura, que os mais conservadores chegava a temer pela integridade moral das mulheres as quais se dirigiam.

“Ora adeus, Senhora Ulina,

Diga-me, como passou,
Conte-me, teve saudades?
Não, não; nem de mim mais se lembrou;
Cantou, algumas modinhas?
E que modinhas cantou?
Lembrou-lhe alguma das minhas?
Não, Não; nem de mim mais se lembrou”.

Seria, porém, a partir da segunda metade do século XIX, que a história da música popular iria fixar os primeiros nomes daqueles que ajudaram a formar no Brasil, um dos mais ricos patrimônios de todo o mundo, no campo dos ritmos e das canções.  E havia com toda a certeza uma razão para isso.

Por oposição à música folclórica (de autor desconhecido e transmitida oralmente de geração a geração), a música popular (composta por autores conhecidos, e divulgada por meios gráficos, como as partituras, ou através de gravações de discos, fitas, filmes ou vídeo-tapes) constitui uma criação contemporânea ao aparecimento das cidades com um certo grau de diversificação social.
No Brasil isso equivale a dizer que a música popular aparece nas duas principais cidades coloniais – Salvador e Rio de Janeiro – no correr do século XVIII, quando o ouro das Minas Gerais desloca o eixo econômico da região Nordeste para o Centro-Sul, e a coexistência desses dois centros administrativos de áreas econômicas distintas torna possível a formação de uma classe média urbana relativamente diferenciada.
Nos primeiro duzentos anos da colonização portuguesa no Brasil, a existência de música popular se tornava impossível desde logo porque não existia povo. Os indígenas, primitivos donos da terra, viviam em estado de nomadismo ou em reduções administradas com caráter de organização teocrática pelos padres jesuítas.
Os negros trazidos da África eram considerados coisas e só encontravam relativa representatividade social enquanto membros de irmandades religiosas. E, finalmente, os raros brancos e mestiços livres empregados nas cidades, constituíam minoria sem expressão, o que os levava ora a identificar-se culturalmente com os negros, ora com os brancos da elite de proprietários – os chamados homens bons.
Durante esses dois primeiros séculos de colonização, portanto, os únicos tipos de música ouvidos no Brasil seriam os cantos das danças rituais dos indígenas, acompanhados por instrumentos de sopro (flautas de vários tipos, trombetas, apitos) e por maracás e bate-pés; os batuques dos africanos (na maioria das vezes também rituais, e à base de percussão de tambores, atabaques e marimbas, e ainda de palmas, xequerés e ganzás), e, finalmente, as cantigas dos europeus colonizadores. Estas eram ainda representadas por gêneros de músicas que remontavam em muitos casos ao tempo da formação dos primeiros burgos medievais, dos séculos XII ao XIV, e que se conheciam como romances, xácaras, coplas e serranilhas.
Fora desses tipos de música, só se poderia citar -  já como criações ligadas à arte de elite dos colonizadores – o cantochão das missas e do hinário religioso católico (salmodias cantadas em contraponto) e os toques e fanfarras militares.
Para que pudesse surgir um gênero de música reconhecível como brasileira e popular, seria preciso que a interinfluência de tais elementos musicais chegasse ao ponto de produzir uma resultante. E, principalmente que se formasse nas cidades um novo público com uma expectativa cultural própria a estimular o aparecimento de artistas capazes de promover essa síntese.  Pois isso só se deu de forma ampla e regular a partir de meados do século dezenove, quando o povo das principais cidades brasileiras configurou em sua heterogeneidade o que modernamente se chama de massa e passou a exigir um tipo novo de produção cultural, capaz de atender a novas formas de lazer.  Essa produção, no setor da música, fez-se representar pelos gêneros da modinha e do lundu; no campo da dança pela criação do maxixe; e, no da diversão em geral, pelo aparecimento dos cafés- cantantes, dos teatros de revista e, mais tarde, das casas de chope e dos desfiles de carnaval.
Para que a música estivesse presente em todas essas criações surgidas da necessidade de organização do lazer na vida das cidades, várias gerações de artistas do povo deram a sua contribuição, primeiro ao som da viola, depois nos conjuntos de choro (à base de flauta, cavaquinho e violão) e, por fim, manejando instrumentos sofisticados como o piano, ou primitivos como os pratos raspados com facas dos sambas de partido alto. Graças ao talento inato das grandes massas populares do Brasil, não apenas nas cidades, mas na área rural (a música urbana no Brasil muitas vezes se confunde com a do campo), os nomes desses criadores do povo se contam por milhares até hoje.

Fonte:  Nova História da Música Popular Brasileira

            Abril Cultural – 1978
Foto: Wikipedia 

 

 

OS PRIMITIVOS NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA - PARTE II - XISTO BAHIA - CALDAS BARBOSA -LAURINDO RABELO

  

XISTO DE PAULA BAHIA 


(SALVADOR, BAHIA 6/8/1841 – CAXAMBU, MG- 30/10/1894)

Por volta de 1860, quando o jovem filho de um oficial veterano das lutas da Independência e da Cisplatina começou se tornar conhecido nas rodas boêmias de Salvador sob o estranho nome de Xisto Bahia, as velhas modinhas sentimentais viviam um curioso momento. Divulgada em meados do século XVIII em Portugal pelo mulato carioca Domingos Caldas Barbosa, (Rio 1740 – Lisboa 9/11/1800),  a modinha passara a ser cultivada nos salões por compositores eruditos influenciados pela música italiana. Lereno Selinuntino, como era conhecido, é considerado nome importante na música popular brasileira. Patrono da cadeira nr. 3 da Academia Brasileira de letras.  Sacerdote, poeta e músico

                                                                     


Assim, já no início do século XIX, quando o Príncipe Regente Dom João se transportou com toda a corte portuguesa para o Brasil, as modinhas algo irônicas e espontâneas de Caldas Barbosa tinham-se transformado em verdadeiras árias de óperas. Como a produção dessas modinhas se circunscrevia aos meios do Paço e da Capela Real (onde até o Padre José Mauricio, compositor de missas e de réquiens, não escapava às tentações do gênero profano), as letras de tais canções eram quase sempre escritas por poetas e literatos.  Isso tudo contribuía para conferir à modinha uns ares aristocráticos, que chegaria a levar estudiosos como Mário de Andrade a admitir que sua origem fora erudita, e só muito tarde o gênero passara ao violão do povo pela mão dos seresteiros e boêmios românticos. Na verdade, apesar de a modinha ter figurado quase cem anos como a música de salão predileta dos compositores clássicos de Portugal e do Brasil, sua popularização vinha sendo promovida desde a década de 1830, no Rio de Janeiro, pela primeira geração de poetas do romantismo.
Reunidos na loja do livreiro e editor carioca Paula Brito, no Largo do Rossio Grande (hoje Praça Tiradentes), poetas como Laurindo Rabelo (Rio de Janeiro 8/7/1826 – Rio de Janeiro 28/9/1864),

                                                                    

                                                        Deus pede estrita conta de meu tempo
                                                        é forçoso do tempo já dar conta;
                                                        Mas como dar sem tempo tanta conta,
                                                        Eu que gastei sem conta tanto tempo
                                                                                                ( domínio público)

Gonçalves de Magalhães, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias começaram a escrever versos que eram musicados não mais apenas por músicos de escola, mas por simples tocadores de violão, como o parceiro de Laurindo Rabelo, João Luiz de Almeida Cunha,  conhecido por Cunha dos Passarinhos. O próprio Francisco de Paula Brito (que era um mulato de origem modesta e chegara ao nível dos literatos do tempo com esforço de autodidata) também compunha modinhas e lundus, chegando a imprimir em sua oficina a partitura do lundu A MARREQUINHA DE IAIÁ, com música de Francisco Manuel da Silva, autor do Hino Nacional. Ativista político , foi o primeiro a inserir no debate político a questão racial. O Jornal O HOMEM DE COR ,primeiro jornal  brasileiro dedicado à luta contra o preconceito racial, colocando-o como precursor da imprensa negra no Brasil.
 Como as principais cidades brasileiras estavam em fase de rápido crescimento, essas produções de poetas e de músicos – de qualquer maneira mais ligados às fontes populares que os das gerações anteriores – ganharam os violões anônimos das ruas, e imediatamente as modinhas entraram a constituir parte obrigatória do repertório de gemidos de mestiços de gaforinha partida ao meio.
É por essa época que, na Bahia, aparece o nome do violonista, compositor e depois ator XISTO BAHIA. De saída, sua importância estava em que, sendo um compositor do povo pela origem, sua condição de ator ia levá-lo a atuar no âmbito da classe média: isso o tornaria o intermediário que estava faltando entre os literatos letristas da primeira metade do século XIX e aqueles cantores de rua que dependiam da criação alheia para fazer cair o queixo de seus auditórios de esquina soluçando nos bordões.
Embora a bibliografia no que se refere à modinha popular seja muito escassa, a maioria dos depoimentos existentes coincide no reconhecimento dessa importância do ator e compositor baiano. No mesmo livro em que cita Xisto Bahia como “o maior cantador de modinhas do século passado”, o musicólogo Flausino Rodrigues do Vale, lembra que o historiador italiano Vincenzo Cernicchiaro definira o baiano como “espírito de harmoniosa graça, inimitável pela maneira especial com que sabia cantar tanto as próprias modinhas como as de alheio punho”, acrescentando: “E era de ver-se como este músico ingênuo, apesar de não conhecer uma nota de música, sabia comover todo um auditório”.
Isso queria dizer que, apesar da condição de representante das camadas mais baixas do povo Xisto Bahia – tal como mais tarde aconteceria no rio com Catulo da Paixão Cearense – conseguia superar com a força da sua personalidade a marca de classe, impressionando as camadas médias e a própria elite com a beleza da música e a dignidade dada à interpretação das suas modinhas.
                                                                              

De fato, ao apresentar-se na cidade paulista de Piracicaba em 1888 – quando já percorria o Brasil como ator consagrado  ­-, Xisto Bahia apesar de citado pela Gazeta de Piracicaba como o ator que “cantou ao violão as modinhas do capadócio, sendo ruidosamente aplaudido pela plateia” (o que dá a entender, pela escolha do termo “capadócio”, o preconceito do comentarista contra o gênero da música), tem a sua participação pessoal ressalvada pela observação: “ Xisto é um cavalheiro extraordinário: reúne o dom de uma fisionomia, um aspecto singular, e no sexo amável abre uma brecha imensa, como a uma muralha de pedra não o faria a maior artilharia”.
Para o longo processo da retomada da modinha como gênero popular – embora sempre sujeita ao talento individual dos “modinheiros”, ao contrário das demais canções populares passíveis de interpretação coletiva, como seria mais tarde o caso do samba -, a importância assumida pela figura de Xisto Bahia era fundamental.
O fato de Xisto Bahia ter livre trânsito entre os intelectuais, depois que a sua parceria com o maranhense Artur Azevedo tornou-o praticamente co-autor da comédia em um ato  UMA VÉSPERA DE REIS (representada pela primeira vez no Teatro São João, na Bahia, a 15 de julho de 1875), ia fazer com que vários poetas baianos se dignassem também a escrever versos especialmente para serem por ele transformados em modinhas populares.
Animados pelo prestígio de Xisto Bahia perante o público dos teatros, figuras da elite como o Visconde de Ouro Preto, o historiador Melo Moraes Filho e o poeta pernambucano Plinio de Lima lançaram-se como autores de modinhas. E em breve os seresteiros podiam contar com modinhas como a famosa   
A CASA BRANCA DA SERRA, que em 1880 , Guimarães Passos “compôs e cantou numa memorável noite de boemia”, segundo afirma o autor baiano Afonso Rui em seu livro Boêmios e Seresteiros do Passado.
Quem melhor distinguiu esse traço de ligação estabelecido através de Xisto Bahia entre a segunda geração de poetas românticos e os catadores de modinhas do povo foi o historiador da música brasileira Guilherme de Melo.  Baiano como o próprio Xisto (que conheceu e ouviu cantar na cidade de Salvador), Guilherme de Melo lembra em seu livro A MÚSICA NO BRASIL, com toda exatidão: “o que se dava com relação a Laurindo Rabelo no Rio, reproduzia-se na Bahia com Xisto Bahia, ator e aprimorado trovador, que arrebatava auditórios, cantando modinhas próprias ou alheias, interpretando e cantando como artista que era engraçadíssimos lundus, aos repinicados do violão”.
E após salientar que o mais admirável no autor baiano “era a pujança do seu estro musical sem conhecer uma só nota de música”, Guilherme de Melo entrava na análise da modinha Quis debalde varrer-te da memória, anotando: “não haverá decerto, no mundo, artista nenhum que desdenhe assinar o seu Quis Debalde, uma vez que no gênero ele em nada é inferior aos seus similares. Como o Nel cor più non mi sento, de Paisiello, sobre o qual Beethoven, o mais sublime dos mestres, não desdenhou fazer diversas variações; como o Carnaval de Veneza, que é o canto mais popular do mundo inteiro e que tem servido de tema a centenas de variações de artistas distintos como Lizst, Paganini e outros; como o Ah che la morte ognora, do Trovador de Verdi, que quanto mais cantado mais lindo se torna, assim o Quis Debalde, de Xisto Bahia, sendo uma composição essencialmente pura e bela como as supracitadas, há de atravessar o perpassar dos tempos, conservando sempre o mesmo encanto e a mesma frescura como se fosse escrito na atualidade”.
A importância de Xisto Bahia, porém, não se esgotava nessa criação de modinhas que, apesar da comparação com músicas eruditas europeias, imediatamente se tornavam populares em todo o Brasil. Conforme salienta Afonso Rui no seu livro Boêmios e Seresteiros do Passado, “... não era Xisto menos inspirado no compor de lundus então em voga como o ISTO É BOM QUE DÓI, O PESCADOR (COM LETRA DE ARTUR AZEVEDO),  A MULATA e A PRETA, esta última ainda ouvida por mim, cantada nesta cidade (da Bahia) num circo de cavalinhos, por Eduardo das Neves”. A citação, além de valer como um documento do papel de divulgador nacional de músicas populares assumido no início do século pelo palhaço Eduardo das Neves, do Rio de Janeiro, ainda é acrescida por Afonso Rui com esta lembrança reveladora, o propósito de Xisto Bahia: o estribilho do lundu A Preta era, nada mais, nada menos, do que o célebre

                      “Laranja, banana,

  Maçã, cambucá,
    Eu tenho de graça
      Que a preta me dá”,

tantas vezes aproveitado mais tarde por outros compositores, entre eles o também baiano Dorival Caymmi no seu samba Cais Dourado. Alguns desses lundus de Xisto Bahia, como o ISTO É BOM, lançado no teatro de revista (o grande divulgador das músicas populares, antes do disco e do rádio), alcançaram, em pleno sucesso, o início do Século XX, com seus estribilhos transformados em música de carnaval.

Para Xisto Bahia – e até neste ponto ele foi representativo – o sucesso e a fama só não lhe conseguiram dar a fortuna que merecia. E após uma vida inteira de glórias e de fama como ator (até o Imperador Pedro II o aplaudiu no espetáculo comemorativo da Batalha do Riachuelo, em 1880), Xisto Bahia foi obrigado a aceitar em l891 um emprego modesto de funcionário da penitenciária de Niterói. Despedido logo no ano seguinte, quando o presidente do Estado do Rio e seu protetor Francisco Portela é deposto do cargo, Xisto Bahia (já casado e com quatro filhos) entra em depressão, adoece e morre em fins de 1894 na cidade balneária mineira de Caxambu.
O aparecimento de outros gêneros de música popular no início do século, fazendo recuar a modinha e o lundu para a memória dos velhos, ia tornar o nome de Xisto Bahia quase desconhecido das novas gerações. Quando, porém, em 1902, a Casa Edison começou a gravar os primeiros discos (até então a gravação era em cilindros), a música escolhida para inaugurar a série 10 000 da matrizes Zon-o-Phone foi o lundu de Xisto Bahia ISTO É BOM, que o cantor baiano interpretava com graça, ressaltando a malícia rítmica que envolvia os versos:

“O inverno é rigoroso,

Já dizia a minha avó;
Quem dorme junto tem frio
Quanto mais quem dorme só...
Isto é bom, isto é bom
Isto é bom que dói”.
Se eu brigar com meus amores
Não se intrometa ninguém
Que acabando-se os arrufos
Ou eu vou, ou ela vem
Isto é bom, Isto é bom,
Isto é bom que dói.
Quem ver mulata bonita
Bater no chão com o pezinho
No sapateado ameio
Mata meu coraçãozinho
Isto é bom, Isto é bom
Isto é bom que dói.
As cadeiras me dói, dói, dói
Minha mulata bonita
Vamos ao mundo girar
Vamos ver a nossa sorte
Que Deus tem para nos dar
Isto é bom, Isto é bom
Isto é bom que dói
Minha mulata bonita
Quem te deu tamanha sorte
Foi um soldado de Minas
Ou do Rio Grande do Norte?
Isto é bom, Isto é bom,
Isto é bom que dói.
Minha viola de pinho
Eu mesmo fui o pinheiro
Quem quiser coisa boa
Não tenha amor ao dinheiro.

 

 Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira

            Abril Cultural - 1978
Fotos: Google

 

 

 

 

OS PRIMITIVOS NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA - PARTE III - JOAQUIM ANTÔNIO DA SILVA CALADO

 

JOAQUIM ANTÔNIO DA SILVA CALADO

RIO DE JANEIRO (11/7/1848-  20/3/1880)



 Até meados do Século XIX, o Brasil não possuía organizações ou grupos musicais que se pudessem chamar de populares. As camadas mais altas cultivavam principalmente a música lírica e podiam dispor das orquestras de teatro ou dos pequenos grupos de câmara que se formavam principalmente no Rio de Janeiro para atender ao refinado entretenimento das elites nos salões.  Os escravos divertiam-se com seus batuques, à base de instrumentos de percussão, e os brancos e mestiços das camadas mais baixas – cantando estribilhos ao ritmo de palmas e violas dançavam fofas, fados, miudinhos e lundus, que não passavam de misturas daqueles batuques de negros com vários gêneros de danças populares portuguesas, espanholas e até francesas (o miudinho surgira do minueto).  Assim, quando, a partir do início do Segundo Reinado, as classes sociais das principais cidades brasileiras começaram a se diversificar, a nascente classe média, não encontrando um tipo de música com que pudesse se identificar (a não ser a modinha e o lundu-canção), teve que importar gêneros europeus como a polca, em 1844, e logo depois o schottisch, a quadrilha e a mazurca. Nas fazendas mais importantes, os proprietários organizavam bandas de escravos, e mesmo em cidades como o Rio e Salvador acontecia os barbeiros formarem seus conjuntos instrumentais denominados música de barbeiros.
Mas esses grupos ou tocavam peças clássicas ou músicas importadas da Europa, geralmente para animar festas de adro das igrejas.
É então, pelos meados do século, que aparece no Rio, tocando flauta como nunca se ouvira, o mulatinho filho de um mestre de banda do mesmo nome – Joaquim Antônio da Silva Calado.  Calado Júnior (como foi conhecido até a morte do pai, em 1867), casara-se muito cedo, e ao ficar órfão, com dezenove anos, foi ganhar a vida tocando não apenas peças clássicas, mas música dançante, em bailes de casas de família e festinhas de casamento e batizado.
Ora, como nos ambientes acanhados das salas de visitas não cabia o instrumental das bandas, essa música doméstica geralmente era fornecida apenas por tocadores de violão e de cavaquinho. Segundo afirmação do Maestro Baptista de Siqueira em seu livro intitulado VULTOS HISTÓRICOS DA MÚSICA BRASILEIRA, “esses artistas aprendiam uma polca de ouvido e a executavam para que os violonistas se adestrassem nas passagens modulantes, transformando exercícios em agradáveis passatempos”.
A Calado ia caber exatamente o papel de introdutor da flauta nesses conjuntos, criando o primeiro grupo instrumental de caráter absolutamente popular e brasileiro, e cuja forma chorada de execução ia conferir ao estilo e aos grupos de músicos o nome de choro.
Explicando essa criação do ponto de vista musical, o Maestro Baptista de Siqueira, referindo-se ao grupo de Calado, escreveu que “constava ele, desde sua origem, de um instrumento solista, dois violões e um cavaquinho, onde somente um dos componentes sabia ler a música escrita: todos os demais deviam ser improvisadores do acompanhamento harmônico.
O resultado da música produzida por esses conjuntos de choro, à base de modulações, era a criação de melodias tão trabalhadas que os editores as julgavam avançada demais; e temendo o fracasso de venda obrigaram Calado a imprimir suas primeiras obras por conta própria, como aconteceu com as polcas QUERIDA POR TODOS (dedicada à sua companheira de choro Chiquinha Gonzaga), A SEDUTORA e LINGUAGEM DO CORAÇÃO.
E os editores não deixavam de ter alguma razão porque, segundo ainda observação de Baptista de Siqueira, já nessas polcas aparecia “uma espécie de introdução servindo de estribilho permanente a duas estrofes que se sucedem em alternativas na execução”.
Essa característica iria servir de base, menos de dez anos depois, para a criação de um gênero novo de música dançante, de par enlaçado, genuinamente brasileira e popular: o maxixe.  O reconhecimento da importância de Calado no meio dos próprios chorões, entretanto, foi desde logo muito grande, e pode ser medido hoje pelo levantamento da influência claramente exercida pelo flautista sobre os músicos populares da sua geração.
“O grande flautista”, escreveu a pioneira da pesquisa de música brasileira Marisa Lira num artigo sobre Calado, “criou escola, contaminando os executores da época com suas interpretações originais. Lançou, já não há mais dúvida, as bases da nacionalização da música popular brasileira. E explicando a ação de Calado como animador da formação de grupos de choro, acrescentou: “Foi seu acompanhador predileto o Saturnino, um pardo magrinho que tocava violão admiravelmente. Seus companheiros de choro: Viriato Figueira, Chiquinha Gonzaga, o Silveira, o Luisinho flautista, Rangel, Baziza, Ismael Correia, Zequinha, Leal Careca e mais alguns”.
Ao lado dessa posição de destaque na área popular, Calado alcançaria em 1871 a honra de tornar-se o terceiro professor da cadeira de flauta do Conservatório Nacional de Música, o que lhe permitiria receber de D. Pedro II, em 1879, juntamente com os demais professores daquela instituição, a Ordem da Rosa, no grau de comendador. A honraria, no entanto, como no caso de tantos outros compositores brasileiros, não o impedia de ter que continuar a tocar como músico profissional em bailes e festas para ganhar a vida.
E foi assim que, logo após o carnaval de 1880, quando ainda tocou flauta como componente de orquestra de bailes de teatro, o Comendador Joaquim Antônio da Silva Calado caiu com a febre de uma epidemia que grassava no Rio de Janeiro e morreu em março, sendo enterrado no cemitério São João Batista “com pequeno acompanhamento de amigos” – conforme esclarece seu biógrafo Baptista de Siqueira -“por haver sucumbido de doença contagiosa e estar sendo proibido qualquer tipo de aglomeração humana”.
Com a morte de Calado, a música brasileira teria que esperar alguns anos até o aparecimento de outro flautista à altura de sua arte (seria Patápio Silva, nascido na vila de Itaocara, no Estado do Rio de Janeiro, a 22 de outubro de 1881), mas as suas composições nunca chegaram a ser esquecidas.
No início do século XX, mas de vinte anos depois do desaparecimento do flautista, o pernóstico poeta Catulo da Paixão Cearense, resolveu tomar como um desafio as dificuldades musicais da última composição de Calado, a polca Flor Amorosa, e transformou-a em canção, colocando-lhe os versos que lhe garantiram a sobrevivência na memória popular:      

                      

                                                           FLOR AMOROSA

                                         Música: Joaquim Antonio da Silva Calado Jr.

                                          Letra: Catulo da Paixão Cearense

Flor amorosa, compassiva, sensitiva, vem, porquê?

És, uma rosa orgulhosa, presunçosa, tão vaidosa
Pois olha a rosa tem prazer em ser beijada, é flor, é flor
Oh! Dei-te um beijo, mas perdoa, foi à toa, meu amor
Em uma taça perfumada de coral
Um beijo dar não vejo mal
É um sinal de que por ti me apaixonei
Talvez em sonhos foi que te beijei.
Se tu puderes extirpar dos lábios meus
Um beijo teu, tira-o por Deus
Vê se me arrancas esse odor de resedá
Sangra-me a boca é um favor, vem cá!
Não deves mais fazer questão
Já pedi, queres mais? Toma o coração
Oh, tem dó dos meus ais, perdão
Sim ou não? Sim ou não?
Olha que eu estou ajoelhado
A te beijar, a te oscular os pés
Sob os teus, sob os teus, olhos tão cruéis
Se tu não me quiseres perdoar
Beijo algum em mais ninguém eu hei de dar.
Se ontem beijavas um jasmim do teu jardim, a mim, a mim
Oh! Por quê juras, mil torturas?
Mil agruras, por quê juras?
Meu coração delito algum por te beijar não vê, não vê
Só, por um beijo, um gracejo, tanto pejo
Mas porquê?

 

Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira

            Abril Cultural - 1978
Fotos –Letra da música - Google

 

 

 

 

 

 

OS PRIMITIVOS NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA - PARTE IV - OS CHORÕES E O TEATRO



 

OS CHORÕES E O TEATRO

PEDRO GALDINO (?)

PAULINO SACRAMENTO (1880-1926)

 PEDRO SÁ PEREIRA ( PORTO ALEGRE- 25/11/1892 RIO DE JANEIRO 4/7/1955)

 

A partir do início do século XX, os velhos chorões tocadores de valsas, schottisches e polcas nas festas de casa de família passaram a encontrar mais facilmente oportunidades de se tornarem profissionais.

Em 1902 começaram a ser gravados discos de gramofone, e o teatro de revista, que vinha crescendo desde fins do século XIX, cada vez mais pedia músicos para suas orquestras e mais composições para animar os quadros de musicados das peças alusivas a temas da atualidade.

PEDRO GALDINO 

Entre esses músicos de choro, que chegaram a ver perpetuadas em discos algumas das melhores provas do seu talento, estava PEDRO GALDINO, operário de uma fábrica de tecidos do bairro carioca de Vila Isabel. Nascido na segunda metade do século passado, Pedro Galdino – preto de origem popular urbana inequívoca, como revela sua condição de operário têxtil – aprendeu a tocar flauta no auge da influência de Calado, o que significa dizer que era um virtuosista, preocupado em dificultar nos solos, o acompanhamento improvisado dos violões e do cavaquinho.
Os dados pessoais sobre Pedro Galdino são muito poucos. Ary Vasconcelos afirma em seu livro Panorama da Música Popular Brasileira que foi mestre da banda da Fábrica Confiança de tecidos, de Vila Isabel, e que vinha de uma família de músicos. Mas as poucas músicas que chegou a deixar gravadas em discos da Casa Faulhaber explicam perfeitamente a razão do seu prestígio entre os chorões cariocas dos primeiros vinte anos do século XX.
Ary Vasconcelos aponta como a mais famosa das composições de Pedro Galdino a música MEU PENSAMENTO, transformada, depois de receber letra de Tuttemberg Cruz, na canção OLHOS DE VELUDO. Em disco Falhauber, porém Pedro Galdino gravou schottisches como ADÉLIA, valsas como PASTORINHA e polcas como FLAUSINA e JOCOSA.

  

PAULINO DO SACRAMENTO


Um pouco mais novo que Pedro Galdino, o pistonista PAULINO DO SACRAMENTO (1880-1926), também músico de banda, alcançaria um degrau a mais na carreira: além de conseguir gravar algumas de suas músicas, pôde atingir o estágio de profissionalização, tornando-se maestro de orquestra do teatro de revista carioca. Contemporâneo e companheiro do Maestro Francisco Braga no Colégio dos Meninos Desvalidos, em cuja banda tocaram juntos. O início da carreira do jovem Paulino do Sacramento ia ficar ligado ao do grande maestro: quando Braga, já regente da banda do colégio, ganhou uma bolsa para especializar-se em teoria em Paris, foi Paulino o indicado para substituí-lo.
Como o teatro de revista estava, no início do século, precisando de músicos capazes de escrever na pauta (a falta de maestros brasileiros obrigava o teatro musicado a servir-se de estrangeiros como o português Gomes Cardim e o espanhol Júlio Cristóbal), Paulino do Sacramento pôde transferir-se para as orquestras de polo de teatro.
A partir da revista O Rio Civiliza-se, em 1912 (ao que tudo indica sua primeira contribuição para o teatro musicado), o nome de Paulino do Sacramento não deixa mais de figurar nos cartazes da Praça Tiradentes, produzindo partituras para revistas, operetas e burletas até 1926, quando morre a 9 de março.
O ano da morte de Paulino do Sacramento marca por coincidência, o momento de glória de outro músico de orquestra de teatro de revista, seu contemporâneo o maestro 
                                                       PEDRO DE SÁ PEREIRA

Temperamento romântico (era, com seu 1,60 m de altura, muito tímido e franzino), especializara-se no gênero que a partir da década de 20 se convencionara chamar de CANÇÃO SERTANEJA.
A influência da poesia de Catulo da Paixão Cearense chegara também ao teatro de revista, onde as figuras idealizadas dos caboclos começavam a queixar-se do desprezo das morenas com uma insistência que contaminou irremediavelmente a música popular brasileira seguramente até a década de 40. Pois foi ao compor uma dessas canções para a revista COMIDAS, MEU SANTO!, estreada no Teatro São José, a 1º de setembro  pela companhia da atriz Margarida Max, que SÁ PEREIRA ia conseguir lançar seu nome muito além dos palcos do teatro musicado.
A canção-modinha (como dizia a partitura), cantada na revista pelo barítono Roberto Vilmar, foi a célebre CHUÁ-CHUÁ cuja letra era do revistógrafo Ari Pavão, e que ainda hoje é lembrada pelo seu estribilho:

“E A FONTE A CANTÁ

CHUÁ, CHUÁ...
E AS ÁGUA A CORRÊ...
CHUÊ, CHUÊ...”

Quando, a partir da década de 30, uma profusão de sambas e de marchas invadiu o teatro de revista com SINHÔ e toda uma geração de compositores das camadas mais populares do Rio, Sá Pereira –silenciosamente, como era seu feitio –retirou-se com o repertório das suas canções debaixo do braço e foi tocar o seu Chuá,Chuá para os passageiros dos navios da Companhia de Navegação Costeira, como pianista de bordo.  

                                                

CHUÁ, CHUA

(Pedro Sá Pereira e Ary Pavão)

Deixa a cidade, formosa morena,

Linda pequena e volta ao sertão
Beber a água da fonte que canta
Que se levanta do meio do chão
Se tu nasceste cabocla cheirosa
Cheirando a rosa do peito da terra
Volta pra vida serena da roça
Daquela palhoça
Do alto da serra
E a fonte a cantar
Chuá, chuá
E as água a correr
Chuê, Chuê,
Parece que alguém
Que cheio de mágoa
Deixasse – que há de dizer –
A saudade
No meio das águas
Rolando também.
A lua branca de luz prateada
Faz a jornada no alto dos céus
Como se fosse uma sombra altaneira
Da cachoeira
Fazendo escarcéus
Quando essa luz lá na altura distante
Loira, ofegante
No poente a cair
Dá-me essa torva que o pinho descerra
Que eu volto pra serra
Que eu quero partir.

Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira

           Abril Cultural - 1978
                                                      

 

 

 

OS PRIMITIVOS NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA -PARTE V-JOSÉ LUIZ DE MORAIS – ERNESTO DO SANTOS – JOÃO MACHADO GUEDES –

 

OS PRIMITIVOS – PARTE V

        JOSÉ LUIZ DE MORAIS –o CANINHA (1883-1961)

        ERNESTO DO SANTOS – o DONGA (05/04/1890- 25/08/1974)

            JOÃO MACHADO GUEDES – o JOÃO DA BAIANA (1887-19740

 

Nos últimos anos do século XIX, as principais cidades brasileiras assistiram ao despertar da consciência das camadas mais humildes da sociedade.  Inferiorizados até 1888 pela existência da escravidão, os trabalhadores livres da era republicana começaram a disputar um lugar na sociedade, o que no campo do lazer, se evidenciou por uma crescente participação na festa do carnaval, transformada pela classe média numa imitação da brincadeira europeia, à base de desfiles de carros alegóricos, corsos e batalhas de flores. Os integrantes dessas populações predominantemente negras e mestiças mais integradas na estrutura econômica das cidades, como os empregados das fábricas e pequenos burocratas, organizaram-se principalmente no Rio de Janeiro em sociedades recreativas denominadas ranchos, e passaram a sair no carnaval produzindo um tipo de música orquestral que acabaria fazendo nascer as marchas de rancho – e, em decorrência delas, as marchas-ranchos.

Os mais pobres, porém, onde a cor negra predominava (era o mestiço que invariavelmente galgava os primeiros degraus da escala social), continuaram a exercitar-se nos seus batuques e rodas de pernadas ou de capoeira (nome preferido na Bahia). Essa parte da população não saía no carnaval de forma organizada, mas em cordões desordenados, cujos desfiles, terminavam quase sempre numa esfuziante coreografia de rabos-de-arraia e em coloridas cenas de sangue.
No entanto, ia ser da música à base de percussão produzida por esses negros com o nome de “batucada” que ia nascer o gênero popular mais nacionalmente representativo da música brasileira:
O SAMBA. Três dos mais velhos representantes seriam CANINHA, JOÃO DA BAIANA e DONGA, dos quais os dois últimos ainda chegaram à década de setenta do século XX, não apenas como sobreviventes de uma era extinta, mas continuando a demonstrar a validade da sua arte em espetáculos evocativamente denominados da “velha guarda”.

 

JOSÉ LUIZ DE MORAIS – O CANINHA

(Rio de Janeiro 06/07/1883 – Rio de janeiro 16/06/1961)


 

O mais antigo, JOSÉ LUIZ DE MORAIS, o CANINHA chamado em criança de Caninha Doce (porque vendia roletes de cana na zona da estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro), aprendeu a música dos negros durante as batucadas realizadas na Festa da Penha. Nos anos 20, foi aclamado “IMPERADOR DO SAMBA”.   Em 1932, quando essa população de descendentes de escravos foi obrigada a morar em casebres no alto dos morros do Rio de Janeiro –compôs o samba É BATUCADA, que valia por uma aula de história da música popular, e venceu o primeiro concurso de sambas e marchas. 

É Batucada

Samba de morro, não é samba,

é batucada, é batucada, é batucada...
Cá na cidade, a Escola é diferente,
                                                    Só tira samba/ malandro que tem patente.
Nossas morenas
Vão pro samba bonitinhas
Vão de sandália
E saiote de preguinhas 

Seu primeiro sucesso foi GRIPE ESPANHOLA – maxixe, seguido de NINGUÉM ESCAPA DO FEITIÇO . QUEM VEM ATRÁS FECHA A PORTA e QUE VIZINHA DANADA.

É BATUCADA, música feita para o carnaval de 1933, enfoca um problema que se tornou polêmico. Segundo o autor Caninha e seu misterioso parceiro Visconde de Pycohiba, “samba de morro não é samba, é batucada”, só vira sambo no momento em que chega à cidade.  É BATUCADA deu aos seus autores o prêmio do primeiro concurso oficial de músicas carnavalescas do Rio de Janeiro. E o intérprete, apresentado no selo do disco como Antonio Moreira da Silva, apenas começava sua carreira, depois firmada como uma das mais importantes na divulgação do samba-de-breque.


                               ERNESTO  JOAQUIM MARIA DOS SANTOS  (DONGA)

(Rio de Janeiro 05/04/1890 – Rio de Janeiro – 25/08/1974)



De fato, quando   ERNESTO DOS SANTOS, o Donga,  o mais novo desses três pioneiros, realiza em 1917, sob o nome de samba, o arranjo de motivos populares que intitulou PELO TELEFONE, sua primeira providência é registrar música e letra na Biblioteca Nacional – o que equivalia mesmo a tirar patente. A atitude de Donga significa que, coincidindo com o aparecimento do samba, a música popular, como criação destinada ao entretenimento da massa, tinha atingido o estágio de produto comercial capaz de ser vendido e de gerar lucros.

A letra original da canção, que era “O chefe da folia/ Pelo telefone / Mandou me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar”, foi alterada para a versão mais conhecida hoje em dia, "O Chefe da Polícia / Pelo telefone/ Manda me avisar/ Que na Carioca / Tem uma roleta/ Para se jogar". Segundo depoimento de Donga para o Museu da Imagem e do som (MIS), “O Chefe da Polícia… foi uma paródia feita pelos jornalistas de A Noite”. Repórteres do jornal tinham, em 1913, posto uma roleta no Largo da Carioca, para demonstrar a tolerância da polícia com o jogo. Em abril de 1913, o chefe de polícia do Rio de Janeiro havia declarado que o jogo permaneceria liberado “até que o governo resolvesse o contrário". Henrique Foréis Domingues, o Almirante, em matéria no jornal O Dia, em 13 de fevereiro de 1972, também confirma essa versão: “alguém lá na redação de “A Noite”, inspirando-se nos episódios em questão, criou a famosa paródia”
O crescimento da indústria do disco, e logo o aparecimento do rádio, seguidos mais tarde do cinema e da televisão, provaram que Donga tinha sido um pioneiro esperto ao correr à repartição oficial para “tirar patente”.Como violonista Donga integrou  o grupo 8 BATUTAS e em 1926 integrou a Banda de Carlito Jazz. Donga viveu  seus últimos anos como funcionário aposentado da Justiça, doente e quase cego, num subúrbio do Rio de Janeiro.

                                                       

                                                                        PELO TELEFONE

                                                                            O chefe da folia

                                                                             Pelo telefone
                                                                             Manda me avisar
                                                                             Que com alegria
                                                                             Não se questione
                                                                             Para se brincar
                                                                             Ai, ai, ai
                                                                             Deixe as mágoas para trás, oh rapaz
                                                                             Ai, ai, ai
                                                                             Fica triste se és capaz e verás
                                                                             Tomara que tu apanhes
                                                                             Pra não tornar fazer isso
                                                                             Tirar amores dos outros
                                                                             Depois fazer feitiço
                                                                             Ah, se a rolinha, sinhô, sinhô
                                                                             Se embaraçou, sinhô, sinhô
                                                                             É que a vizinha, sinhô, sinhô
                                                                             Nunca sambou. Sinhô, sinhô
                                                                             Porque este samba, sinhô, sinhô
                                                                             De arrepiar, sinhô, sinhô
                                                                             Põe perna bamba, sinhô, sinhô
                                                                             Mas faz rodar
                                                                             Sinhô, sinhô

                                                                             O peru me disse

                                                                             Se morcego visse
                                                                             Não fazer tolice
                                                                             Ou então saísse
                                                                             Dessa esquisitice
                                                                             De disse, não disse,
                                                                             Ai, ai, ai
                                                                             A estátua do ideal triunfal
                                                                             Ai, ai, ai
                                                                             Viva o nosso carnaval sem rival
                                                                             Ninguém tira amor do poço
                                                                             Por Deus foste castigado
                                                                             O mundo estava vazio
                                                                             E o inferno habitado
                                                                            Queres ou não, sinhô, sinhô
                                                                            Ir por cordão, sinhô, sinhô.
                                                                            E ser folião, sinhô, sinhô
                                                                            De coração, sinhô, Sinhô.


JOÃO MACHADO GUEDES – JOÃO DA BAIANA

(Rio de janeiro 17/5/1887 - Rio de janeiro 12/01/1974) 




 Mas, o exemplo da vida do mais velho sobrevivente da geração que criou o samba a partir da batucada, JOÃO MACHADO GUEDES (chamado JOÃO DA BAIANA, porque era filho da baiana Perciliana de Santo Amaro), veio mostrar que essa esperteza ia valer para todos, menos para os que criaram o próprio samba. Fiscal da Marinha, recusou viajar com Pixinguinha e os Oito Batutas para não perder o emprego.

Recolhido à Casa dos Artistas de Jacarepaguá, na zona rural carioca, João da Baiana passou o fim de seus dias de uma forma não muito diferente daquela que descreveu com bom humor no seu samba de maior sucesso, o Cabide de Molambo, composta em 1917, um samba corrido. A letra e o título da música são calcados na figura de um malandro que tinha como apelido “cabide de molambo”. Era alfabetizado, quase poeta, mendigo, mas servidor de amigos, e João da Baiana o conheceu na tendinha do Tinoco, na Gamboa.
Apesar de ser conhecida popularmente, a música só recebeu a primeira gravação em 1933, quinze anos depois de ter sido composta.

Meu Deus, eu ando

Com o sapato furado
Tenho a mania
De andar engravatado
A minha cama
É um pedaço de esteira
E é uma lata velha
Que me serve de cadeira
Minha camisa
Foi encontrada na praia
A gravata foi achada
Na ilha de Sapucaia
Meu terno branco
Parece casca de alho
Foi a deixa de um cadáver
Do acidente no trabalho
O meu chapéu
Foi de um pobre surdo e mudo
As botinas foi de um velho
Da revolta de Canudos
Quando eu saio a passeio
As damas ficam falando
- Trabalhei tanto na vida
Pro malandro estar gozando
A refeição
É que é interessante
Na tendinha do Tinoco
No pedir eu sou constante
E o português
Meu amigo sem orgulho
Me sacode o caldo grosso
Carregado de Entulho.

  

Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira - 1978

           Abril Cultural
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